Nos últimos anos se iniciou um movimento que toma muitos leitores de quadrinhos, em que muitos decidiram migrar para os mangás e manhwa/webtoon com uma ideia de que há uma qualidade maior na produção. Mas será que realmente há um abismo de qualidade que separa as produções norte-americanas e asiáticas?

Quando falamos de quadrinhos, a primeira coisa que vem à mente são os super-heróis. Hulk, Homem-Aranha, Batman e Superman são um exemplo fácil de personagens lembrados e associados a este pensamento. Seus filmes e animações são conhecidos pelo grande público, e se tornaram marcas gigantescas.

Da mesma forma quando falamos em mangás, obras como Naruto e Dragon Ball são os primeiros a virem na mente de qualquer pessoa que nem ao menos tenha contato frequente com mangás ou animes. As duas são obras mundialmente famosas, no Brasil especialmente por terem seus animes transmitidos por tanto tempo na TV Aberta e feito parte da infância de muitos. 

A série animada da Liga da Justiça e Dragon Ball Z foram sucessos da TV Aberta durante muitos anos.

A Continuidade

Uma das principais reclamações de leitores de quadrinhos Marvel e DC é a falta de uma continuidade verdadeira. É normal personagens que após sofrerem com mudanças e transformações por um longo período de tempo retornem ao original como se nada houvesse realmente ocorrido, e acontecimentos são completamente esquecidos ou ignorados já que há uma rotatividade de escritores, e em algumas ocasiões parece não existir uma regra que faça que o que o roteirista anterior tenha feito seja válido para o futuro.

Um grande número de escritores ajuda a fomentar o pensamento de que não há uma linha real a ser seguida, e como a múltiplas ideias e pensamentos é até normal ver mudanças de personalidade e tratamento com alguns personagens. A própria DC decidiu abdicar da ideia de cronologia a um tempo, e permitiu histórias mais soltas e que em certa dose não precisam ter qualquer compromisso com alguma linha do tempo.

A História do Universo Marvel, minissérie em 6 edições publicada em 2019, fez um extenso resumo dos mais de 80 anos da ‘Casa das Ideias’.

Por outro lado, os mangás das grandes editoras são produzidos por um ou dois autores, que aconselhados por seus editores dão um rumo à história. No meio deste processo existe um inicio, meio e fim, e com a conclusão há um final definitivo para a história. Mas nem sempre é assim.

Não se tornou tão anormal vermos mangás que recebem continuações ou derivados, justamente por serem tão populares e lucrativos. Dragon Ball, Naruto, Cavaleiros do Zodíaco e até o mais recente fenômeno The Seven Deadly Sins (Nanatsu no Taizai).

Cavaleiros do Zodiaco (Saint Seya) é uma máquina de produzir spin-off. (Em ordem na imagem: Soul of Gold, The Lost Canvas, Saintia Sho e Episode.G).

Nesse momento, os dois eixos se unem e mostram suas similaridades. É realmente complicado fazer alguns personagens envelhecerem, passarem o manto, morrerem ou abandonarem um universo de possibilidades, mas não por terem um mundo de ideias a se explorar, mas por ser um retorno financeiro certo. Jogos, brinquedos, roupas e acessórios. O que é entretenimento para o espectador, é uma mina de dinheiro para os produtores.

Cada um dos lados trata da sua forma o trabalho de continuidade e de manter a chama acesa, contudo, no final acabam sendo com o mesmo intuito. Não é anormal vermos autores de quadrinhos abandonando obras depois de um certo ponto e a história continuar mesmo assim, ou mangás que a partir de certo ponto aparenta se tornar apenas enrolação e forçação de ideias que parecem completamente jogadas.

A Continuidade – Parte 2

Uma pergunta bem simples e fácil de ser respondida: É mais fácil acompanhar um mangá ou um quadrinho das Marvel e DC?

Obviamente é muito mais fácil entender onde começa um mangá, sendo apenas necessário começar do número um em 99% das vezes. Mas quando falamos de quadrinhos, é realmente complicado para qualquer novato entender onde começa e acaba qualquer coisa. Mas por que toda essa dificuldade?

Coleções de mangá são mais fáceis de acompanhar e compreender a ordem.

O método de continuidade de quadrinhos para a Marvel e DC acaba funcionando de forma completamente diferente. Muitas histórias já possuem décadas de publicações, e algumas já ultrapassaram a marca de 500 edições, e dentro destas edições já passaram muitos roteiristas e artistas, e até ideias concebidas pelos criadores já podem ter sido aprimoradas ou esquecidas. Então mesmo que esses novos leitores iniciassem da primeira edição, dificilmente achariam linear e coesa a história ao chegar na de número 500.

Contudo, há alguns anos a Marvel tem mudado seu modo de trabalho, onde é normal vermos o reinício de suas numerações, já que isso acaba facilitando novos leitores que podem ter um ponto de partida, e de tal forma não precisam se sentir assustados com títulos extremamente longos.

Capa de Demolidor #500 por Marko Djurdjevic, publicada em 2009. A numeração da revista foi zerada 1998, mas quando a soma do volume anterior e o novo resultou no número fechado, ela passou a ser adotada. O título foi zerada novamente em mais de uma ocasião.

Muitos veem esse modo de trabalho apenas como um método de manter as vendas altas, já que as edições número 1 costumam vender muito, e desta forma se acaba criando um ciclo de recomeços. Essa não é uma lógica de pensamento totalmente errada, mas ainda assim, não é uma ideia de trabalho necessariamente ruim, visto que é realmente difícil para muitos que não conhecem profundamente as histórias terem um ponto de partida, e do lado monetário é um fato que histórias em quadrinhos não vendem mais na mesma proporção que nos seus tempos áureos, e isso é um fenômeno que vem da mídia física como um todo. Se nem a playboy é mais capaz de vender como antes, quem dirá o Super-Herói e o vigilante mascarado que combatem o crime fantasiado.

Os inúmeros títulos complicam ainda mais o leitor não habituado e que caiu de paraquedas vindo diretamente influenciado por outra mídia. O Superman que é um dos pilares dos quadrinhos é um personagem que sempre teve duas revistas em paralelo (Action Comics e Superman), outros como Batman e Homem-Aranha possuem muito mais, e consequentemente os múltiplos títulos se conectam em alguma grande história, forçando o leitor a embarcar em uma leitura paralela caso queira ficar por dentro de todos os detalhes.

A saga Carnificina Total dos anos 90 transcorreu entre os 5 títulos que o Homem-Aranha possuía na época.

É sem dúvidas um método de produção bem problemático e que em determinadas ocasiões chega a ser insuportável. Há quem defenda a extinção de títulos mensais e que seja trabalhado apenas minisséries e histórias fechadas. Mas será essa mesmo uma boa solução?

Quadrinhos funcionam como os seriados semanais, com grandes episódios que repercutem por muito tempo, episódios bons para razoáveis para cumprir história, e os episódios tão esquecíveis e ruins que lhe fazem lembrar que viu só quando reassistir.

Se você for pesquisar por qualquer lista de recomendação de grandes histórias verá algumas como Saga da Fênix Negra (X-Men), Velho Logan (Wolverine), Contrato de Judas (Novos Titãs) ou Morte em Família (Batman). Mas o que todas têm em comum? São todas contadas no meio das histórias mensais.

Entre as edições #66 e #72 de Wolverine, do volume iniciado em 2003, se encontra o arco ‘Velho Logan’, que foi inspiração para o filme ‘Logan’ de 2017.

Muitas vezes grandes histórias precisam ser trabalhadas com mais tempo e longevidade, e detalhes passados que repercutem futuramente são fundamentais. Histórias longas ajudam a trabalhar a personalidade e desenvolvimento de personagens, principalmente em equipes que há muitos que precisam ser trabalhados. 

Obviamente que este tipo de detalhe pode ser construído em minisséries fechadas que a história é completamente solucionada dentro daquele número limitado proposto, mas como em seriados semanais, e até mesmo os mangás, muito do que faz parte da construção e charme da história é “o que vai acontecer a seguir”

George Pérez foi o responsável pelo título da Mulher-Maravilha durante 5 anos (1987-1992)

É sempre muito bom ler uma história fechada, poder saber exatamente onde concluirá sua leitura, mas muito do encanto e bom trabalho do roteirista de qualquer material que é lançado semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente é a ansiedade que terá capacidade de gerar pelo que acontecerá depois, e como toda a trama e conflitos irão se desenvolver nas próximas edições, fazendo o leitor aguardar apreensivamente pela continuação. Ao ler tudo de uma única vez, algumas vezes se perde o efeito de como a trama é produzida.

A qualidade Arte+Roteiro

Os mangás e manhwas/webtoons são tão mais originais e muito mais desenvolvidos em questão de roteiro e arte quando comparados com quadrinhos americanos? O que se pode dizer é que depende muito, e o que vemos de muitos comentários é apenas como uma criança descobrindo um brinquedo novo.

Como qualquer coisa recém descoberta, as primeiras leituras podem ser fantásticas e diferentes, mas caso decida se aprofundar um pouco mais e ir além do básico verá que o mercado de mangás e manhwas/webtoons assim como o de HQs é bem repetitivo e reciclador de ideias.

Para qualquer produto existem fórmulas utilizadas para o sucesso, e isso não se limita para a forma como histórias são contadas. É muito normal vermos em diversos gêneros que uma linha de acontecimentos são completamente semelhantes, é nesse momento que cabe ao roteirista/escritor dar seu toque pessoal refinando a fórmula.

Solo Leveling se tornou um grande sucesso, e com a popularidade vieram outras obras com estilo e desenvolvimentos semelhantes, como Seoul Station Necromancer e Overgeared.

Quando conhecemos os mangás que estão ou estiveram no topo da popularidade vemos um ciclo repetitivo de histórias, que durante todo decorrer seguem padrões semelhantes, com algumas exceções que podem ou não acontecer. O idoso que não parece grande coisa, mas é um grande mestre, os personagens que superam seus limites apenas na força de vontade e por confiar nos seus companheiros, o interesse amoroso que se arrasta por toda a história e parece que nunca vai a lugar algum.

Da mesma forma os quadrinhos de super-heróis há sempre a ameaça que irá deixar cicatrizes e consequências que serão lembradas para sempre, ou até os editores acharem mais conveniente e nunca mais ser citado, ao menos que algum escritor relembre ou tenha conhecimento de tal história e decida revisitar os acontecimentos, algo que pode demorar alguns bons anos.

Arte de Alex Ross para Guerras Secretas (2015), saga que mudou o Universo Marvel para sempre (ou pelas duas primeiras semanas depois dela ter acabado).

Indo mais a frente há o trabalho com a arte. Em mangás e manhwas/webtoon seguindo uma cultura em que há uma relação mais próxima com artes marciais, histórias de ação e aventura costumam ser mais dinâmicas, com muita atenção para lutas e repletas de cenas que tentam ser épicas e acompanhadas de frases de efeitos. Em trabalhos longos é possível ver a evolução e crescimento dos autores como desenhistas.

A evolução dos traços de Tite Kubo é visível nas capas de Bleach que foi publicado de 2001 até 2016 pela ShonenJump

Já nos quadrinhos, costumamos ver cenas de ação que se importam mais com detalhes de ambiente, e com bastante foco em diálogos para o crescimento da dramaticidade. Porém, algo que se tornou normal é a falta de regularidade de artistas considerados de qualidade ou que se encaixem com o tema proposto.

Muitas histórias não possuem artistas que casem perfeitamente com o tema, o que gera limitações narrativas e muitas vezes perde o brilho e as ideias que o roteirista propôs. Há também casos em que a arte é tão boa, que o roteiro limitado e de pouco desenvolvimento acaba não fazendo jus ao artista.

Durante os eventos de Infinito (2013), Jefte Palo ficou encarregado pela arte do título dos Thunderbolts, o que incomodou muitos leitores que alegavam que a arte não combinava com o tom mais violento da revista.

Apesar dos pontos negativos, acaba sendo sempre divertido ver como alguns autores e artistas trabalham com diferentes personagens, e concebe sua própria visão e narrativa para a história, algo difícil de se ver em mangás. Vai dizer que nunca imaginou como seria Naruto com uma visão mais completa de roteiro que possui Eiichiro Oda (One Piece), ou como seria se Tite Kubo (Bleach) que desenha personagens belíssimos fosse o responsável pela arte de Hunter x Hunter.

O Básico e o diferenciado

É bem claro que até esse ponto tudo que mencionei é a leitura básica, o popular que sempre está na moda. O que move os mangás em grande quantidade são os battle shounen (Naruto, Dragon Ball), da mesma forma que os grandes pilares como a Trindade da DC (Superman, Batman e Mulher-Maravilha) e heróis como os Vingadores e os X-Men movem a indústria de quadrinhos, e nos manhwas/webtoons a tendência das histórias que se assemelham ao RPG e MMO transportado para a realidade (Solo Leveling).

Para um leitor de quadrinhos mais aficionado e que acompanha mais a fundo é normal ver notícias sobre HQs canceladas prematuramente, da mesma forma que para um leitor de mangás aficionado é normal ver histórias sendo canceladas por baixa receptividade. É um fenômeno comum para os dois lados, pois é assim que os grandes da indústria trabalham, focando primeiramente em retorno com números altos, e depois necessariamente em qualidade.

Muitos mangás não conseguem sobreviver ao concorrido mercado japonês. Red Sprite, Ultra Battle Satellite e Ole Golazo são apenas alguns deles.

A fórmula para estas histórias é sempre a mesma, o que acontece é a mudança de detalhes e a forma como cada autor vai utilizá-las, e apenas com o tempo vai saber se acertou ou fracassou. 

O que realmente incomoda o leitor é o simples fato de se ler muito. Quando se acompanha muitas histórias durante um bom tempo, aquilo que até então o encantava começa a se tornar repetitivo, e um senso crítico mais afiado começa a se formar, criando um desejo de querer muito mais do que é entregue. 

A questão é que histórias clássicas não nascem da noite pro dia, e se tratando das grandes editoras, trabalhar com o básico é mais fácil e rende mais resultados, e limitando histórias mais ousadas para quando realmente veem algum potencial de ser algo mais e que possa de alguma forma alcançar e conversar com o público menos exigente.

A icônica capa de Batman – O Cavaleiro das Trevas (1986) de Frank Miller, Klaus Janson e Lynn Varley

É nesse momento que o leitor que deseja o algo a mais deve buscar ir além do básico, ao invés de esperar que seus heróis fantasiados ou seus protagonistas otimistas e esperançosos de mangás mudem sua fórmula. 

Editoras menores e autores independentes o tempo todo produzem histórias fora da caixa, onde possuem mais liberdade para trabalhar suas ideias e produzir algo que vá além do dito básico e normal.

Muitos seriados e filmes nos dias atuais são adaptações de quadrinhos que muitos nem ao menos ouviram falar, da mesma forma que não existem apenas os animes de grande popularidade, e há grandes trabalhos que são pouco conhecidos pelo grande público.

As adaptações de 30 Days of Night, Detroit Metal City e Cheese in the Trap.

Há gêneros de histórias para todo tipo de pessoa, com temáticas das mais variadas e impressionantes. O que cabe ao leitor que cresceu e refinou seu gosto é ir procurar estas histórias, porque se for esperar que as grandes editoras se adaptem e sejam sempre ousadas como são em raras ocasiões, aguardarão por muito tempo. 

O que resta é esperar que os autores de conteúdo mais básico produzam histórias divertidas e que agradem para quando você sentir vontade de ler algo que possa relaxar e não pensar muito, e quem sabe nesse meio tempo sejam capazes de desenvolver histórias acima da média e que se tornem futuros clássicos. 

Mas é sempre bom lembrar que os ganhadores de Oscar raramente são os blockbusters que geram rios de dinheiro.